Reproduzo abaixo este excelente resumo de António Bettencourt, sobre o romance de Carlos Ceia dedicado aos ridículos da academia portuguesa no domínio da literatura. De facto não é preciso muito para sabermos que o mesmo se aplica aos departamentos de ciências sociais, psicologia e ciências da educação. Julgo mesmo que a universidade portuguesa atingiu um tal estado de decadência intelectual nestas áreas que chega a meter aflição. A única solução é mesmo a mistura progressiva no espaço europeu.
Aqui:
Carlos Ceia, O Professor Sentado, um Romance Académico, Lisboa, Edições Duarte Reis, 2004
A cadeira do Professor
Carlos Ceia, professor universitário com uma extensa obra crítica, estreia-se no romance com uma história algo inesperada, satírica e divertida: uma personagem, também de nome Carlos (Magalhães), que coordena o Departamento de Estudos Literários e Culturais da Universidade Imperial de Lisboa, envolve-se em diálogos e disputas com Augusto Chagas, professor de Teoria da Literatura e Crítica Literária do mesmo departamento (que se aparenta ao alter-ego ficcional do autor), sendo ambos as personagens centrais do texto, que conta com muitas outras mais, do meio universitário ou cultural contemporâneo, configurando-se o texto sob a forma conhecida por romance académico. Uma autêntica colmeia de tipos, com seus tiques e toques, surge-nos em situações de aulas, exames, concursos, artigos e livros, leituras, intrigas, dislates, e o leitor vai aprendendo, reconhecendo, rindo e reflectindo.
O romance, sob a influência assumida sem ansiedades ou angústias de David Lodge e de outros nomes consagrados do género, está construído em múltiplas camadas narrativas (multi-layered novel) e é uma paródia ao mundo académico português, à critica literária e a todo o universo cultural ligado à literatura, salientando com alguma virulência as suas falácias, injustiças, ridículos e compadrios. Sátira perspicaz de muitos dos métodos aí utilizados, nela se narra intermináveis e surrealistas reuniões onde não se produz nada, onde a ignorância geral e a incompetência são confrangedoras, onde assuntos sérios são debatidos de forma ligeira e pouco digna. Nele se faz referência a aulas de docentes incapazes de renovação, que repetem ad nauseam programas cientificamente desactualizados; a promiscuidades entre a universidade e um poder político onde pontificam os medíocres bem relacionados; a correcções de testes e exames feitas sem seriedade, em que os docentes nem se dão ao trabalho de ler o que os alunos escrevem, classificando por impressões ou de modo aleatório; a relações de poder entre professores, alunos e funcionários onde não falta o assédio sexual e a permissividade; tudo questões que a intriga do romance denuncia, assumindo-as como relevantes para a construção do ensino em ordem a possibilitar uma sociedade melhor.
Nomeadamente, nele se ergue a crítica à injustiça das provas de pós-graduação, onde o poder discricionário dos professores destrói ou promove carreiras a seu bel-prazer ou ao sabor da ignorância. É o caso de duas personagens, Jorge Rodrigues, que defende uma tese um pouco caricata, com muito pós-modernismo à mistura, sobre as crónicas de Jorge Listopad neste jornal (residindo a caricatura não nas personalidades, aqui e noutros casos, mas nas relações literárias e modos académicos que em torno delas se vão entretecendo), e que será aceite com classificação elevada, e de Miguel de Vide, que apresenta uma tese sobre Álvaro Feijó, liminarmente reprovada, por ser caucionada por entidades contra-corrente. Esta reprovação levará ao suicídio da personagem, o que levanta uma dimensão séria para onde o romance muitas vezes aponta, e por vezes mesmo aprofunda: a do sentido da criação literária e da razão do ensino, a da justificação da vida e do acesso ao sagrado, como se verifica nesse layer pungente que é o do testamento de Miguel de Vide.
Sendo uma sátira à universidade, não o é menos ao jornalismo literário e cultural, em que o próprio JL aparece com um papel determinante (que na caricatura do texto é o «Jornal de Letras Leves»), mas também os mais conhecidos suplementos literários, com críticas consideradas como pouco informadas, inconsistentes e reduzindo-se a impressões gerais colhidas em conversas, press-release ou Internet. Crítica aberta ainda aos editores, às universidades privadas, aos cursos absurdos, à teoria literária sem tom nem som, onde sobressaem os arautos de um pós-modernismo sacrossanto, em referência constante. Inclui ainda uma saborosa crítica da literatura light, mas também de uma certa literatura de elite e pretensiosismo, cruzadas na personagem da escritora Magda Vimioso, avençada pelo estado com uma bolsa de criação literária, cujos textos o romance reproduz. É possível reconhecer facetas de algumas personalidades em evidência no ambiente português, como esse expoente da citação que é Eugénio Porto, ou uma Directora-Geral do Ensino Superior que primava pela ignorância, ou a estudiosa aposentada, Professora Sandra Bataille, especialista em Saramago e Lobo Antunes, da qual se diz no livro que «agora já não sabe de qual é que gosta mais», e que em certos layers é mencionada com o nome em que provavelmente alguns leitores estarão a pensar. A actualidade recente passa assim pela intriga romanesca, desde referências a um mediático plágio de artigos da revista The New Yorker até à publicação da antologia Século de Ouro com as sequelas que suscitou.
As diferentes camadas narrativas do romance, muito modernaço mas reclamando-se do antepassado Tristram Shandy (e onde paira também a sombra de Garrett), apresentam registos tão diversos como grafismos, fotografias, emails, blogs, websites, artigos de jornal, entrevistas e até um «dicionário» das suas personagens, encomendado a um muito pouco conhecido ex-docente da Universidade Democrática da Madeira, que, diz-se no livro e parece ser verdade, durante três anos ali sofreu tratos de polé. Mas o seu espaço de eleição é um centro comercial, o Dolce Vita de Miraflores, onde muitas vezes as personagens se encontram e reúnem, onde são tomadas muitas decisões académicas e urdidas algumas intrigas, inclusive as da maneira de escrever o romance, em supino e ainda divertido apelo à metaficção.
Um dos layers mais interessantes é o das intervenções do autor-real que vai interrompendo o fio narrativo para dar conta das dificuldades e angústias do processo criativo em que se empenhou. Neste layer inclui-se uma entrevista fictícia com o autor após a publicação da obra, discussões entre o autor-real e as suas personagens, cujo culminar é o roubo do manuscrito pela personagem Augusto Chagas que, ultrapassando o seu criador, o publica com o seu nome e forja um artigo de uma conhecida colaboradora do JL, que o romance transcreve. A intriga termina num colóquio na Universidade de Cambridge (que de facto teve lugar há uns meses) onde se parodia a representação portuguesa, não só pela forma como se comporta e pelo pouco interesse que manifesta nos eventos, como também pelas opiniões abstrusas que vai manifestando nos diálogos que mantém com os outros participantes; a universidade inglesa e o mundo da literatura anglo-saxónica não deixam também de ser parodiados em muitas das suas idiossincrasias, nesta parte final do livro, sendo ainda de notar as breves descrições da cidade de Cambridge e do evento, a que não é alheio o deslumbramento provinciano do autor-real e do seu alter-ego narrativo. Augusto Chagas, cada vez mais convencido da inutilidade da probidade científica e cada vez mais afastado do seu progenitor, fecha o romance aproveitando o colóquio para fazer mais um significativo roubo literário.
Esteticamente paródico, este romance diverte mas deixa amargos de boca em quem se interesse pelo ensino da literatura, a partir do símbolo que introduz. Com efeito, o professor sentado é o professor institucionalizado, o professor que atingiu a consagração e se instala confortavelmente na sua cátedra. Mas é também, e às vezes desde o início da carreira e sem cátedra nenhuma, o docente atingido pela impreparação, pelo cansaço ou pela impotência, que abandona a aposta de um ensino dinâmico e renovador. E é sobre tudo isto que Carlos Ceia nos leva a reflectir, de forma jocosa e bem-humorada, com manifesto engenho e capacidade inventiva.
António Bettencourt
A cadeira do Professor
Carlos Ceia, professor universitário com uma extensa obra crítica, estreia-se no romance com uma história algo inesperada, satírica e divertida: uma personagem, também de nome Carlos (Magalhães), que coordena o Departamento de Estudos Literários e Culturais da Universidade Imperial de Lisboa, envolve-se em diálogos e disputas com Augusto Chagas, professor de Teoria da Literatura e Crítica Literária do mesmo departamento (que se aparenta ao alter-ego ficcional do autor), sendo ambos as personagens centrais do texto, que conta com muitas outras mais, do meio universitário ou cultural contemporâneo, configurando-se o texto sob a forma conhecida por romance académico. Uma autêntica colmeia de tipos, com seus tiques e toques, surge-nos em situações de aulas, exames, concursos, artigos e livros, leituras, intrigas, dislates, e o leitor vai aprendendo, reconhecendo, rindo e reflectindo.
O romance, sob a influência assumida sem ansiedades ou angústias de David Lodge e de outros nomes consagrados do género, está construído em múltiplas camadas narrativas (multi-layered novel) e é uma paródia ao mundo académico português, à critica literária e a todo o universo cultural ligado à literatura, salientando com alguma virulência as suas falácias, injustiças, ridículos e compadrios. Sátira perspicaz de muitos dos métodos aí utilizados, nela se narra intermináveis e surrealistas reuniões onde não se produz nada, onde a ignorância geral e a incompetência são confrangedoras, onde assuntos sérios são debatidos de forma ligeira e pouco digna. Nele se faz referência a aulas de docentes incapazes de renovação, que repetem ad nauseam programas cientificamente desactualizados; a promiscuidades entre a universidade e um poder político onde pontificam os medíocres bem relacionados; a correcções de testes e exames feitas sem seriedade, em que os docentes nem se dão ao trabalho de ler o que os alunos escrevem, classificando por impressões ou de modo aleatório; a relações de poder entre professores, alunos e funcionários onde não falta o assédio sexual e a permissividade; tudo questões que a intriga do romance denuncia, assumindo-as como relevantes para a construção do ensino em ordem a possibilitar uma sociedade melhor.
Nomeadamente, nele se ergue a crítica à injustiça das provas de pós-graduação, onde o poder discricionário dos professores destrói ou promove carreiras a seu bel-prazer ou ao sabor da ignorância. É o caso de duas personagens, Jorge Rodrigues, que defende uma tese um pouco caricata, com muito pós-modernismo à mistura, sobre as crónicas de Jorge Listopad neste jornal (residindo a caricatura não nas personalidades, aqui e noutros casos, mas nas relações literárias e modos académicos que em torno delas se vão entretecendo), e que será aceite com classificação elevada, e de Miguel de Vide, que apresenta uma tese sobre Álvaro Feijó, liminarmente reprovada, por ser caucionada por entidades contra-corrente. Esta reprovação levará ao suicídio da personagem, o que levanta uma dimensão séria para onde o romance muitas vezes aponta, e por vezes mesmo aprofunda: a do sentido da criação literária e da razão do ensino, a da justificação da vida e do acesso ao sagrado, como se verifica nesse layer pungente que é o do testamento de Miguel de Vide.
Sendo uma sátira à universidade, não o é menos ao jornalismo literário e cultural, em que o próprio JL aparece com um papel determinante (que na caricatura do texto é o «Jornal de Letras Leves»), mas também os mais conhecidos suplementos literários, com críticas consideradas como pouco informadas, inconsistentes e reduzindo-se a impressões gerais colhidas em conversas, press-release ou Internet. Crítica aberta ainda aos editores, às universidades privadas, aos cursos absurdos, à teoria literária sem tom nem som, onde sobressaem os arautos de um pós-modernismo sacrossanto, em referência constante. Inclui ainda uma saborosa crítica da literatura light, mas também de uma certa literatura de elite e pretensiosismo, cruzadas na personagem da escritora Magda Vimioso, avençada pelo estado com uma bolsa de criação literária, cujos textos o romance reproduz. É possível reconhecer facetas de algumas personalidades em evidência no ambiente português, como esse expoente da citação que é Eugénio Porto, ou uma Directora-Geral do Ensino Superior que primava pela ignorância, ou a estudiosa aposentada, Professora Sandra Bataille, especialista em Saramago e Lobo Antunes, da qual se diz no livro que «agora já não sabe de qual é que gosta mais», e que em certos layers é mencionada com o nome em que provavelmente alguns leitores estarão a pensar. A actualidade recente passa assim pela intriga romanesca, desde referências a um mediático plágio de artigos da revista The New Yorker até à publicação da antologia Século de Ouro com as sequelas que suscitou.
As diferentes camadas narrativas do romance, muito modernaço mas reclamando-se do antepassado Tristram Shandy (e onde paira também a sombra de Garrett), apresentam registos tão diversos como grafismos, fotografias, emails, blogs, websites, artigos de jornal, entrevistas e até um «dicionário» das suas personagens, encomendado a um muito pouco conhecido ex-docente da Universidade Democrática da Madeira, que, diz-se no livro e parece ser verdade, durante três anos ali sofreu tratos de polé. Mas o seu espaço de eleição é um centro comercial, o Dolce Vita de Miraflores, onde muitas vezes as personagens se encontram e reúnem, onde são tomadas muitas decisões académicas e urdidas algumas intrigas, inclusive as da maneira de escrever o romance, em supino e ainda divertido apelo à metaficção.
Um dos layers mais interessantes é o das intervenções do autor-real que vai interrompendo o fio narrativo para dar conta das dificuldades e angústias do processo criativo em que se empenhou. Neste layer inclui-se uma entrevista fictícia com o autor após a publicação da obra, discussões entre o autor-real e as suas personagens, cujo culminar é o roubo do manuscrito pela personagem Augusto Chagas que, ultrapassando o seu criador, o publica com o seu nome e forja um artigo de uma conhecida colaboradora do JL, que o romance transcreve. A intriga termina num colóquio na Universidade de Cambridge (que de facto teve lugar há uns meses) onde se parodia a representação portuguesa, não só pela forma como se comporta e pelo pouco interesse que manifesta nos eventos, como também pelas opiniões abstrusas que vai manifestando nos diálogos que mantém com os outros participantes; a universidade inglesa e o mundo da literatura anglo-saxónica não deixam também de ser parodiados em muitas das suas idiossincrasias, nesta parte final do livro, sendo ainda de notar as breves descrições da cidade de Cambridge e do evento, a que não é alheio o deslumbramento provinciano do autor-real e do seu alter-ego narrativo. Augusto Chagas, cada vez mais convencido da inutilidade da probidade científica e cada vez mais afastado do seu progenitor, fecha o romance aproveitando o colóquio para fazer mais um significativo roubo literário.
Esteticamente paródico, este romance diverte mas deixa amargos de boca em quem se interesse pelo ensino da literatura, a partir do símbolo que introduz. Com efeito, o professor sentado é o professor institucionalizado, o professor que atingiu a consagração e se instala confortavelmente na sua cátedra. Mas é também, e às vezes desde o início da carreira e sem cátedra nenhuma, o docente atingido pela impreparação, pelo cansaço ou pela impotência, que abandona a aposta de um ensino dinâmico e renovador. E é sobre tudo isto que Carlos Ceia nos leva a reflectir, de forma jocosa e bem-humorada, com manifesto engenho e capacidade inventiva.
António Bettencourt
1 comentário:
Qual é a diferença entre isto e o livro do Cláudio Ramos?
Já há muito tempo que a intelectualidade das faculdades portuguesas é uma grande anedota, no questions about it.
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