Sloterdijk dizia num diálogo com Carlos Oliveira, e no seguimento da tese durkheimiana sobre a formação de natureza delirante das sociedades, que os agrupamentos humanos consistem na arte de agrupar pessoas fazendo-as crer que têm algo em comum quando de facto assim não é. Miguel Real, na Morte de Portugal, já referiu a frieza dos técnicos que apresentando folhas limpas do ponto vista criminal (alguns!) são desprovidos de qualquer pingo de humanidade e de empatia para com o sofrimento do próximo. Hanna Arendt já tinha avançado, depois do caso Heichmann, a tese de que o mal é algo de muito mais prosaico e banal do que se julga revelando-se nos interstícios e nos pequenos pormenores e justificações cobardes e tacanhas do dia-a-dia rotineiro de pessoas e instituições. Nos anos sessenta do século passado Stanley Milgram inaugurou uma série de experiências sobre a temática da obediência à autoridade e influência social. Nestas um técnico incentivava os sujeitos a punirem com choques eléctricos (simulados) os seus semelhantes sempre que estes respondiam erradamente a determinadas perguntas. O técnico tinha o cuidado de explicar aos sujeitos punidores (os “professores”) que os respectivos choques poderiam ser extremamente dolorosos para os punidos (os “aprendizes”), mas que a responsabilidade era do técnico e não do voluntário da experiência. Os choques variavam entre os 45 volts e os 450 volts. Claro que a intensidade real não ultrapassava os 45, embora os sujeitos cobaias julgassem que poderia ir até aos 450. Foi pedido a alguns psiquiatras que fizessem uma estimativa, antes de saberem os resultados definitivos, sobre qual seria a percentagem de sujeitos capazes de punir os seus semelhantes com choques de 450 volts. Como na população não existiam mais de 0,2% de psicopatas, diziam eles, então este seria o valor para a quantidade de indivíduos a chegar a tais limites no quadro da experiência. Ora, dos 40 sujeitos iniciais 26 foram até ao limite máximo dos choques, e 35 ultrapassaram a barreira dos 150 volts. A experiência teve depois muitas outras variantes que agora não interessam.
O que é que isto tem que ver com a triste figura dos médicos que apareceram na reportagem da TVI sobre o tema das listas de espera para cirurgias em oftalmologia?
O que aqui digo sobre os médicos não se aplica a todos os médicos e isso é de tal modo evidente que nem precisa de mais conversa.
O que a reportagem revelou mas que já se sabia é a estado de frieza calculista e financeira que governa muitos médicos. Isto é mais grave porque a instituição da Ordem dá-lhes cobertura e a singularidade do médico que aparece pateticamente (ora rindo nervosamente, ora quase gritando histericamente) frente à câmara de televisão sente-se protegido. E sente-se protegido porque a impunidade e a imoralidade da situação em que se encontram envolvidos está desculpabilizada pela dita autoridade científica. Como diz cinicamente o patético bastoneiro da Ordem é preciso muito cuidado com as intervenções cirúrgicas que requerem condições técnicas especiais não vá acontecer alguma coisa ao paciente. É verdade. Mas note-se que o argumento é usado para assustar o paciente e simultaneamente desculpabilizar a classe dos oftalmologistas, neste caso. Este argumento é caucionado por sua vez pela absoluta falta de concorrência científica dentro da profissão devido ao monopólio que a Ordem mantém vaidosamente não deixando formar o número de médicos suficientes para as necessidades do país. A vaidade consiste em manter uma aristocracia de classe asfixiando a potencial oferta de talentos de base popular. Até ao 25 de Abril, então, era grotesco o número de médicos que se seguiam dentro das mesmas famílias como que por sucessão hereditária. Claro que a asfixia económica e educativa imposta até aí compôs o quadro que agora herdamos. No entanto, o mesmo médico bastoneiro que justificava o eventual acidente que pode ocorrer em caso de falta de condições numa cirurgia desta natureza não falou dos casos vergonhosos dos colegas que quando colocados em tribunal por negligência médica nunca obtêm da parte dos coleguinhas o tão indispensável testemunho da merda que fizeram. Depois vêm os advogados dizer que nunca se obtém o contraditório necessário porque a autoridade da medicina são os médicos e eles não estão para denunciar as asneiras dos comparsas. A corporação, nesses casos, já não se preocupa com o tão propalado acidente por falta de condições. É claro que o erro tem que ser previsto e portanto a população tem que continuar à espera anos e anos para fazer uma operação às cataratas que leva em média 8 minutos de duração. O problema é que o tão solidário e empático bastoneiro está preocupado com o facto de ter sido um médico espanhol que numa semana despachou 234 pacientes por metade do preço dos portugueses num hospital do Barreiro contra a porca média de 2 pacientes/semana feita pelos médicos portugueses. Além disso o mesmo argumento serve para demover eventuais iniciativas de algum oftalmologista tipo Zé do Telhado que se lembre de fazer o mesmo. Assim fica devidamente assustado temendo que os colegas o entalem caso cometa um erro técnico nas condições em que o espanhol trabalhou. E claro, ao espanhol trataram logo de pedir o diploma não fosse algum aldrabão a explorar a coutada nacional de idosos tão bem protegida pelos nossos batas brancas.
O que é que isto pode revelar?
A maldade espalha-se por entre o argumento técnico-científico. Mergulha fundo no narcisismo, na vaidade dos técnicos além do descaramento das torpes explicações que dão frente às câmaras. Depois a culpa é dos políticos (mas não é sempre?) como veio outro dizer. De vez em quando dá jeito. O que se passa é que no Portugal actual temos algumas classes que nada têm que ver com o povo (seja lá isso o que for). Tipos sem segurança social, sem emprego, sem remuneração, com reformas baixíssimas, que vêm o sistema nacional de saúde a encolher a olhos vistos para gáudio dos privados nada podem esperar desta gente que os encara apenas como contribuintes e raramente como pessoas. O caso destes médicos é apenas um sintoma de uma enormidade social que se está a formar aos poucos como uma bola de neve que cresce a cada dia que passa. A única coisa que a larga maioria dos portugueses tem em comum é a língua, nada mais.
Cada médico, frente às câmaras da TVI, lembrava-me os sujeitos da experiência de Milgram, sempre a dar um choque explicativo-burocrático cada vez maior justificado pela autoridade científica dos colegas da Ordem. E cada “grito” do jornalista recebia por sua vez mais um choque explicativo ainda mais grotesco que o anterior: ora era a falta de condições, ora falta de contratos decentes ou outra coisa qualquer. Mas a culpa nunca era da inicativa dos médicos em questão. Entretanto ia sobrando a incómoda presença da magnífica prestação do médico espanhol sentida como espinho cravado na puta da desavergonhada tromba daqueles canalhas.
sábado, 10 de maio de 2008
DO DESCARAMENTO E DA VERGONHA – A ORDEM DOS MÉDICOS E OS OFTALMOLOGISTAS PORTUGUESES
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2 comentários:
A propósito e a despropósito, se alguém quiser participar no blogue (?) da alma penada que não nos larga a porta -- não, uma vassourada, não, porque também é criatura de deus, pode seguir e aceitar o "link". É uma favor que nos/lhe faz.
Passo a reproduzir:
"O utilizador do Blogger hans beckert convidou-o para contribuir para o blogue: Vicentinas de Braganza.
Para participar neste blogue, visite:
http://www.blogger.com/i.g?inviteID=7147301600437280169&blogID=3662191230677018728
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Para obter mais informações sobre o Blogger e sobre como iniciar o seu blogue gratuito, visite http://www.blogger.com."
caro meta... também eu me vi reduzida a e-ko... aplaudo de pé o que aqui escreveste sobre a canalha infame que descreves e que se aproveita de todos aqueles que não podem beneficiar da ADSE para poderem ser tratados no privado! conheço muitas histórias interessantes que um dia contarei por aqui ou noutro lugar!
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