Neste blogue praticam-se a Liberdade e o Direito de Expressão próprios das Sociedades Avançadas
Nas minhas deambulações matraqueantes das calçadas nocturnas de Lisboa, encontrei uma vez um tipo absolutamente incomparável. Era americano, antigo GI no Vietname e correspondia em tudo ao que imaginamos ser um soldado dos USA. Alto, olhos azuis, louro, atlético, uma síntese do recentemente falecido cowboy do Bareback, desculpem Brokeback Mountain, com o Indiana Jones. Chamava-se Steve, era e é texano. A sua história é digna de figurar nos anais, sublinho, nos anais da saga vivida pela condição de todos os jewellery makers descendentes da macaquinha Lucy.
Encontrei-o e estava já com as costumeiras aptidões para lançar a rede, mas desisti perante aquele enigmático sorriso amistoso e de simultânea rejeição. Entabulámos conversa e conclui que o yankee estava desejoso de conhecer todos os locais onde se produz aquela famosa e apetecível joalharia que todas as senhoras de bem ostentam ao peito. Lá lhe fui debitando locais como a estação dos barcos para o Barreiro, o hoje extinto Órinol (como o povo diz) de Belém, a gare do Rossio, enfim, todos aqueles sítios aprazíveis que pertenceram outrora ao acervo turístico da capital. No dia seguinte voltámos a encontrar-nos e foi com invejoso e despeitado espanto que o escutei contar as proezas do labor que começara logo às sete da manhã no Terreiro do Paço, acabando às 8 da noite na estação do Rossio. O matulão gabava-se de ter despachado 27 gajos! 27 gajos num dia só e tudo no mais perfeito e organizado trabalho de cinzel bocal. Perguntando-lhe se era possível encontrar 27 fulanos bons para o biberon, foi-me logo dizendo que não era nada esquisito e o que interessava era a funcionalidade instrumental.
Homem viajado por todos os continentes, conhecia de cor as especificidades gustativas de cada sémen, pois iniciara a pesquisa no Vietname, onde palitara os dentes com as pequenas espadas da catrefada de soldados do Sul, muito surpreendidos por DAQUELA VEZ não serem devidamente encavados, como é tradição naquelas paragens. Do Vietname, trazia a recordação de um licor quase vegetal, nada amargo e relativamente abundante, igualzinho ao que logo a seguir experimentou no Laos. Quanto aos cambojanos, achava que carregavam nas especiarias, o que alterava o sabor do néctar. Era capaz de passar horas a descrever o sabor da iguaria, consoante a culinária e clima.
Dos norte-americanos dizia o característico "well you know, our melting pot"... e de Portugal já conhecia algumas caracteristicas. Sabia que pela manhã era regra não detectar odores que não fossem próprios do sabão, para logo a meio do dia e fim da tarde, serem claramente destrinçáveis vários tipos de queijo fondue que emprestavam uma tipicidade peninsular à bebida. Um inigualável lanche com comes e bebes!
A última vez que me deu notícias, foi há cerca de um ano. Tinha descoberto uma nova variante kármica no subcontinente indiano e assim contou-me o seu Ramaiana. Depois de aterrar em Bombaim, iniciou a adaptação das papilas gustativas à milenária civilização adepta dos sabores fortes. Logo na estação de autocarros descobriu nos aliviatórios, uma chusma de monhés de diversos tipos, desde aqueles que enrolam os cabelos à volta da cabeça, cobrindo-os com um turbante, até aos mais comuns que de balandrau circulam, com as axilas dos pendentes sempre mais arejadas. É claro que há que não esquecer os mais modernos, de calças pretas pinçadas e cintadas, cintura alta que passa o umbigo e camisa de mangas folgadas, geralmente florida em tons rosa, salmão e amarelo limão, onde sob o punho apertado por um reluzente botão dourado a descascar, vislumbramos pesadas correntes à volta dos pulsos, de onde pendem imagens de Kali e Vishnu, uma pata de coelho em metal e uma ocidentalérrima ferradura da sorte. O Steve extasiava-se com aqueles luxos e com os bigodes habilidosamente empertigados por óleo de côco, condimento utilizado também nos lindos cabelos pelos ombros. É o que dá, ter um passado de seis mil anos!
Bom, dali seguiu directamente para a beira mar e começou a calcorrear a costa a caminho do local onde o subcontinente vira bruscamente em direcção a norte, tal como Bartolomeu Dias fizera na passagem do Cabo da Boa Esperança. E que esperança tinha o Steve! Descobriu o paraíso na Terra, porque logo constatou que o argumento primeiro naquelas paragens sempre foi o som do vil metal. Já Vasco da Gama observara que não valia a pena distribuir pirolitos e contas de vidro, porque eles gostam é de moeda sonante e assim, o Steve lá enchia todos os dias a sua mochila com moedas de Rupia, que tal como gracioso óbulo, distribuía nas aldeias piscatórias onde fazia a sua prospecção oral. Contou-me que vinham aos magotes, abanando as cabeças, pulando dos coqueiros, de tanga branca à cintura e oferecendo paparis, chamuças e outras especialidades gastronómicas. Após despachar avós, pais e netos de barba (não suporta pré-púberes), continuava o caminho tal texano errante à procura do Shangri-La mamão. No dia seguinte, lá chegava a um estaleiro, a uma outra aldeia piscatória, ou a um resort para nababos endinheirados. Assentava arraiais atrás de qualquer moita sobre a praia e era uma questão de tempo para todas as redondezas estarem perfeitamente cientes da boa nova, vindo em procissão gandhiniana oferecer a contribuição ao benfeitor do dia. As moedas voavam em escassas horas e a maior dificuldade era o quotidiano procurar de bancos que lhe dessem trocos que satisfizessem a crescente procura. E assim passa os meses da monção, época excelente para se dedicar à obtenção seminal, pois raros são os dias em que os pescadores se atrevem a sair a barra. Estando em terra, são presas fáceis para o grande tubarão branco. Tem tudo metodicamente planeado, a sua mentalidade empresarial é severa e olha aos detalhes. Num ano desce a costa ocidental, para no ano seguinte, aterrar em Calcutá, para tal um novo Fernão Mendes Pinto, iniciar a sua Peregrinação. O seu espírito democrático anglo-saxónico, rejeita enojadamente o sistema de castas e para ele, os intocáveis são o petisco mais delicioso e apetecido, dada a disponibilidade e o gigantesco contingente disponível.
O Steve não engole espadas ou fogo. Não se senta em camas de picos nem espeta facas no seu belo corpo de cinquentão muito bem conservado. Engole isso sim, litros de testemunho genético, sendo hoje o seu organismo um potencial campo de estudo do genoma humano daquela área do planeta. A fortíssima carga espiritual emanada pela grande mãe Índia, traz inesperados e suaves milagres, pois o Steve nunca sofreu de qualquer maleita! Não há virus que resista ao estômago de aço, onde os ácidos aniquilam qualquer veleidade de infecção de um organismo que até hoje rejeitou hepatites, sidas, condilomas, candidas, áfetas e outros bicharocos e cogumelos do género. Milagre! Milagre!
Lembram-se do segundo filme do Indiana Jones, O Templo Maldito? A última cena mostrava o regresso dos monhézinhos às suas aldeias natais, em alegre correria e guinchando de prazer por reverem entes queridos. É assim mesmo que imagino o regresso do Steve, de dois em dois anos a cada uma daquelas paragens onde mitigou a má impressão deixada pelo colonialismo que falava a sua língua. Abençoado seja.
2 comentários:
Se esse tipo morrer por aquelas paragens, vai ter um enterro de arromba maior que o da Madre Teresa de Calcutá.
:-))
Ficou tudo tão engasgado que nem se atrevem a comentar :-)
Venham as memórias do Muleta Negra, que não tinha uma perna, mas atacava no Rossio...
E mais as Crónicas do "Animatógrapho" :-)
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