Dos limites da Igualdade e da Liberdade num mundo sobrepovoado!
Mais do que alguma vez o foi, a nossa existência é antropocêntrica e cronocêntrica. Antropocêntrica, porque conduzimos o destino do Planeta sem qualquer respeito pelas outras espécies que nele habitam e cronocêntrica porque não nos preocupamos seriamente com as gerações futuras. Somos a espécie mais inteligente de que temos conhecimento mas estamos a conduzir o Planeta para uma catástrofe ambiental de proporções apocalípticas, e estamos a levar as sociedades humanas por caminhos perfeitamente demagógicos e desproporcionados, numa orgia vorazmente consumista que faz de nós, humanos, a maior de todas as pragas e o maior de todos os predadores que jamais puseram os pés na Terra.
Dentro de 3 ou 4 décadas irão coincidir uma série de ameaças e riscos para a humanidade que, conhecendo todos nós a história do comportamento humano ao longo de séculos e milénios, nada de bom nos augura para quando essa coincidência ocorrer: aquecimento global, depleção do petróleo (convencional), destruição ambiental generalizada e, acima de tudo, como corolário de todas as ameaças, um volume demográfico humano de proporções aterradoras. Quando tudo isto se conjugar, em simultâneo, não serei eu a por as mãos no fogo pela sobrevivência da espécie humana.
Mudemos parcial e momentaneamente de assunto para voltarmos depois ao cerne da questão. Quando pensa em si próprio e nas pessoas que o rodeiam, certamente que gosta de se ver a si próprio como alguém civilizado, minimamente culto, preocupado com o mundo, com a pobreza, com a igualdade e com a distribuição de recursos, de riqueza e de bem-estar. Certamente que não tem si e dos seus a imagem de pessoas incivilizadas. No entanto, já parou para pensar sobre o facto inusitado de termos de conviver nos nossos tempos, tempos que acreditamos serem os mais civilizados de sempre, com fenómenos que julgávamos completamente eliminados da História da Humanidade, como os fenómenos da escravatura de seres humanos, exploração desenfreada e demente de pessoas, tráfico de pessoas, crianças e órgãos humanos, redes de abuso sexual de menores, etc, etc, etc., numa escalada de horrores que coloca a nossa civilização em patamares não muito diferentes dos tempos do esclavagismo generalizado?
No entanto, quando pensamos nos nossos próprios actos, quando nos vemos pessoalmente ao espelho, jamais nos consideramos pessoas incivilizadas. Nós estamos longe dessa barbárie. Não somos nós que praticamos esses actos horríveis. Mas, já se perguntou a si próprio o que faria você, os seus familiares, os seus vizinhos, as pessoas que se cruzam todos os dias consigo, se o mundo sofresse uma catástrofe de proporções inimagináveis, decorrente da ruína total das instituições políticas democráticas, da destruição da economia global, da ausência de recursos ou de alimentos? Acha que continuaria a comportar-se como uma pessoa civilizada se o mundo à sua volta se transformar num caos completo, onde a insegurança, a instabilidade e a violência estarão presentes em qualquer lugar e a todos os instantes? Recordemos os atrozes sucessos das confusões recentes no Ruanda, onde cerca de um milhão de seres humanos foram queimados vivos, mortos à catanada e objecto de todo o tipo de arbitrariedades com base em critérios meramente étnicos. Nada disso tem a ver connosco, dirão. Não fomos nós. Nós somos europeus e civilizados. Jamais faríamos o mesmo, dirão muitos de vós. Mas, ainda não há muito tempo, em plena Europa, povos supostamente civilizados envolveram-se em guerras fratricidas com actos não menos bárbaros do que os ocorridos no Ruanda. Na ex-Jugoslávia, Croatas, Sérvios e outros que tais, envolveram-se em conflitos de tal ordem que envergonham qualquer membro da espécie humana. Eu, como todos vós, li na comunicação social episódios em que pessoas que sempre tinham sido vizinhos, que conviviam quotidianamente uns com os outros, se mataram recorrendo a todo o tipo de atrocidades. Sim, eu também li aquelas histórias em que homens obrigaram outros a arrancar com os dentes os testículos de outros homens. E este é apenas um pequeno exemplo do horror que nós, humanos, somos capazes de executar, em nome da nação, da etnia, da religião ou dos interesses económicos. Mas, somos civilizados, não somos? Somos Europeus, residimos em países desenvolvidos, cultos e pacíficos, não é? Pois, convirá recordar que foram os europeus que deram início a duas guerras mundiais (eu defendo mais a tese de que se tratou duma tragédia em dois actos) e que, pasme-se, foi o país mais civilizado da Europa que esteve no centro dessa barbárie. A Alemanha de Kant, Hegel, Marx , Nietzsche, Bach, Haendel, Mozart, Beethoven, Brahms, Schumann, Wagner, Goethe, Thomas Mann, Herman Hesse, Brecht, Kepler, Max Weber, Einstein e tantos outros, cuja memória agora não recordo, esteve na origem de uma incivilidade jamais visionada pela humanidade. Mas eram civilizados, não eram? E cultos? E prósperos? Acha mesmo que a barbárie não pode voltar, em todo o seu esplendor, gula e voracidade só porque alcançámos patamares civilizacionais elevados e pertencemos a um mundo desenvolvido? Está convencido que tudo isto é impossível? Ou extremamente improvável? Acha mesmo que está bem sentado no seu confortável sofá e que é impossível o mundo levar uma reviravolta destas?
E não, não se confunda. Eu não estou a fazer a apologia da barbárie. Quem me dera que nada disto viesse a ocorrer. Sou o primeiro a desejar que nada disto se concretize. Mas, se ocorrer, irá ocorrer a uma escala monstruosa porque nos nossos tempos está tudo ligado. A nossa sociedade global é um edifício cuja estrutura assenta numa rede de relações e de dependências intrínsecas. As ameaças ao nosso mundo merecem, por isso, uma análise bastante cuidada porque o que está em risco é demasiado: demasiadas vidas humanas, demasiados interesses, demasiados direitos e deveres, demasiados sentimentos e emoções.
Que quer a Humanidade? Ou antes, que quer cada ser humano? Uma resposta possível, que para estes efeitos serve muito bem, diz-nos que cada ser humano deseja a satisfação das suas necessidades. E quais são as necessidades humanas a serem satisfeitas? Apesar de um pouco ultrapassada, podemo-nos orientar pela célebre pirâmide de Maslow, segundo a qual cada um de nós seguirá uma lógica mais ou menos hierarquizada que passa primeiro pela satisfação de necessidades fisiológicas (relativas à sobrevivência básica, como a alimentação ou a protecção contra a natureza), seguidas das necessidades de segurança (estabilidade, segurança económica e social), das necessidades sociais (relativas ao relacionamento afectivo e à sociabilidade humana), das necessidades de auto-estima (relativas à promoção e ao desenvolvimento do respeito próprio, do estatuto e do prestígio sociais, consideração social, independência, etc.) e, finalmente, em último lugar, as necessidades de auto-realização (relativas à realização intelectual, moral, espiritual, etc.). Deixemos de lado as imensas críticas à teoria de Maslow, mesmo tendo em conta que há seres humanos que não seguem esta lógica hierárquica, porque o que aqui nos traz é o padrão do comportamento humano e não as excepções. Sucede que, à partida, nenhum ser humano procura satisfazer a sua necessidade de ler um livro, ver um filme ou ouvir uma música se estiver esfomeado ou a morrer de sede. Voltarei a esta questão posteriormente, para desenvolvimentos mais específicos.
Bem, mas de quem estamos a falar? Do Homem Moderno (TODOS NÓS), que surgiu da derrocada do Antigo Regime e do alvor da Modernidade: o Homem Moderno que surgiu do pó e do sangue das revoluções inglesa, francesa, norte-americana e industrial. Numa outra perspectiva, também ela simples, o Homem Moderno aspira à realização desses três grandes valores: Liberdade (económica, social, política, cultural, axiológica, intelectual), Igualdade (económica, social, política) e Fraternidade (económica, social, cultural, religiosa, política) e tudo isto, se possível, em diferentes escalas territoriais (mundiais, internacionais, nacionais). Sabemos, no entanto, que há diferenças significativas quanto ao cumprimento destas necessidades. Se é certo que, no mundo desenvolvido (Europa, norte da América, Austrália, Japão e pouco mais) estão cumpridos patamares minimamente aceitáveis de desenvolvimento económico, social e político, onde se respira liberdade, igualdade e fraternidade, e onde é relativamente raro o cidadão que não possa satisfazer minimamente as suas necessidades, também é certo que ainda existem regiões do planeta onde quase tudo isto está por cumprir-se e onde subsistem desigualdades profundamente aberrantes aos nossos civilizados olhos.
Que sucedeu ao longo da segunda metade do Século XX? Os povos do mundo desenvolvido prosperaram e viram as suas necessidades progressivamente serem satisfeitas, enquanto milhares de milhões de seres humanos viviam num regime de baixo consumo, nos quais mal conseguiam satisfazer as suas necessidades básicas.
Mas, uma vez mais pergunto: que quer o Homem Moderno? A humanidade caracteriza-se pela insatisfação e, como tal, faz parte da natureza humana querer mais, sempre mais, mais e mais. Assim que um ser humano satisfaz as suas necessidades básicas, imediatamente percorre o olhar à sua volta para ver o que pode “agarrar”. Cada ser humano deseja ter sempre mais e é claro que cada um de vocês acha bem. Eu sou um dos primeiros a achar bem. Mas, esperem lá. Será que é a mesma coisa termos um planeta habitado por mil milhões de pessoas, cada uma delas a querer mais, ou termos um planeta de 6 mil milhões de pessoas, cada uma delas a querer mais, e mais, e mais?
O mundo desenvolvido tem pouco mais de mil milhões de pessoas (entre os quais nos incluímos) e essas pessoas foram responsáveis pelo consumo de grande parte do petróleo consumido até hoje. No entanto, as economias emergentes, entre as quais se destaca a Índia (com cerca de 1.1 mil milhões de habitantes) e principalmente a China (com cerca de 1.3 mil milhões de pessoas) estão a crescer a ritmos assustadores. Nas últimas duas décadas, a China tem registado crescimentos económicos regulares superiores a 9% (o que significa que, em cada 8 anos, duplicou o valor do seu PIB).
Por isso, chegámos a uma encruzilhada: existem recursos neste Planeta para todos? É possível continuar a conceder liberdade económica a mais seres humanos? É possível continuar a distribuir riqueza por mais seres humanos? Aparentemente, é! Você olha à sua volta e parece que o mundo continua regularmente a girar debaixo do Sol, sem se observarem grandes convulsões, não é? Por isso, se alguém lhe perguntasse se você é a favor de mais igualdade e de mais desenvolvimento para o resto do Mundo, certamente que responde que sim. Você e eu também! Que é aquilo que todos no fundo desejamos: um mundo mais livre, mais igualitário, mais rico, mais próspero. E, se alguém lhe perguntar se acha que todos nós devemos ter mais rendimentos, menos impostos, mais riqueza para todos nós, você também responde que sim, não é? Fomos todos formatados para isso, não é? Todos queremos mais, sempre mais. Mas, quantos de nós se interrogam quanto às consequências de darmos a 6 mil milhões de seres humanos mais, sempre mais?
Será necessário recordar que a China, só por si, irá duplicar os efeitos consumistas de todo o mundo desenvolvido e que a Índia vai pelo mesmo caminho? Será necessário recordar que os demógrafos antecipam uma população de 9 mil milhões de seres humanos para o ano de 2050?!!! E você, continua a achar que podemos continuar a criar riqueza e a distribuir riqueza por toda essa gente? E já parou para pensar nas consequências ambientais para um Planeta exangue como o nosso? E quem é que o pôs assim? Nós, os habitantes dos países desenvolvidos (que somos pouco mais de mil milhões). Já imaginou as consequências ambientais para este planeta quando, em vez de sermos mil milhões de seres humanos com padrões de consumo elevadíssimos, formos 6 mil milhões (para além dos restantes 3 mil milhões que também terão de ser alimentados e vestidos)? Sim porque você acha muito natural desejar sempre mais, não é? E acha natural que todos devemos e podemos desejar sempre mais. Toca a criar riqueza, dizem-nos à Direita, e toca a distribuí-la, dizem-nos à Esquerda. E você continua a achar que está tudo bem e que nada disto é um caminho insano. Continua a achar que tudo isto é natural, bom, responsável, humano, humanitário, civilizado. Claro que é. Eu também pensava assim. No fundo, eu também penso humanamente, civilizacionalmente, axiologicamente assim. Mas, se não nos interrogarmos sobre os limites do que estamos a fazer, sobre as consequências do alargamento dos elevados padrões de consumo, o destino próximo da Humanidade ficará traçado em linhas muito grossas e muito duras.
Qual seria a sua reacção perante um político que viesse com este discurso: é necessário controlar draconianamente a natalidade humana, reduzir significativamente os níveis de consumo, impor regras rígidas no que se refere à agressão ambiental e reduzir drasticamente a factura energética? É preciso dizer que tipo de sucesso teria este político? É preciso dizer quantos de todos nós, que somos muito civilizados, inteligentes e cultos, nos riríamos desse político? O quê, reduzir os meus rendimentos? Olha agora, querem lá ver que se eu quiser ter dez filhos, não os posso ter, não? Quem é esse borra-botas para me dizer que não posso ter o aquecimento central ligado 24 horas por dia no Inverno e o ar condicionado ligado todo o dia no Verão? E quem é este gajo para me dizer que não posso ir para o trabalho no meu carro? E, como, então agora não posso ter 2 apartamentos, 3 carros, 4 televisões, 2 computadores? E não posso comer o que me apetecer e, se quiser, pesar 150 quilos? E não posso viajar pelo mundo inteiro quando me apetecer, fazer turismo a torto e a direito? E não posso comprar vestuário novo todos os meses? Claro, e o que é que você faria a um político que lhe dissesse que teria de limitar os seus níveis de consumo? Mandava-o à fava, não era? Os políticos à sua Direita continuam a exigir mais crescimento económico, e à sua Esquerda, maior distribuição da riqueza. E o povo vai andando satisfeito porque, uns e outros, repetem aquilo que todos querem ouvir. O que nenhum deles tem coragem de dizer é algo que interfere com direitos, liberdades e garantias de todos nós. E eu seria o primeiro a ficar chocado, humanamente e civilizacionalmente chocado, se um político dissesse que a natalidade humana tivesse de ser draconianamente restringida. E você também, não é? Sim, é difícil chegar a estas conclusões. Não é fácil questionarmos os nossos princípios e os nossos valores. Tudo aquilo que nós consideramos básico, que jamais questionamos, porque faz parte dos valores que mais prezamos. No entanto, estaria esse político a dizer alguma mentira? Não, estaria a dizer verdades. Verdades duras, nuas e cruas que nenhum de nós quer ouvir porque continuamos bem instalados nos nossos sofás e queremos sempre mais. Porquê? Porque você tem necessidades que deseja satisfazer. Mas, veja se percebe: o problema não reside no facto de você desejar mais. O problema não reside no facto de todos desejarmos sempre mais. Humanamente é legítimo que cada um de nós queira sempre mais. Mas este planeta não tem mil milhões de seres humanos. Tem 6.5 vezes mais e estamos à beira de uma catástrofe inimaginável porque não paramos de satisfazer as nossas necessidades materiais. Pense bem: se a satisfação das necessidades das pessoas do mundo desenvolvido conduziu à desertificação e à desflorestação de imensas regiões do Planeta, se as consequências do Aquecimento Global estão aí, com toda a força, como resultado do impacto humano produzido essencialmente pelo mundo desenvolvido, se os recursos energéticos fósseis se estão a esgotar a um ritmo absurdo, cujas necessidades humanas não poderão ser preenchidas satisfatoriamente por outros recursos ou fontes energéticas, você acha mesmo que podemos continuar a esticar a corda? Mas você continua a reclamar por causa do aumento do preço do petróleo, não é? E, por acaso, tem noção que é devido ao aumento da procura (economias emergentes, com a China à cabeça), que a oferta não tem sido capaz de satisfazer, que é a principal causa do aumento do preço do petróleo? E tem noção que quanto maior for o desenvolvimento chinês, maiores serão as pressões sobre a sua carteira? Ah, mas você continua a desejar o desenvolvimento de todo o mundo, certo? Não percebe mesmo o que se está a passar, pois não? E continua a reclamar porque o preço dos alimentos aumenta assustadoramente, não é? Mas não deixou de ir para o seu trabalho de carro, pois não? Nem de viajar a torto e a direito, pois não? Claro, é um direito seu. Mas esquece-se que é o seu (NOSSO) padrão de consumo que está a provocar um aumento dos preços alimentares porque os cereais agora também servem para produzir combustíveis. E, neste momento, as suas necessidades de locomoção automóvel estão a colidir estrepitosamente com as necessidades alimentares de centenas de milhões de seres humanos que só querem uns grãos de arroz ou de milho para satisfazer as suas necessidades básicas. E você continua mesmo convencido que, no meio desta loucura consumista, da qual você não quer abdicar, continua a haver margem para ter SOL NA EIRA E CHUVA NO NABAL, não é? E continua a interrogar-se porque razão as mudanças globais estão a ocorrer no sentido em que estão a ocorrer. E continua a apontar o dedo a estes ou àqueles, não é? No fundo, no fundo, você ainda não percebeu, pois não? Ou já começa a discernir a alhada em que nos encontramos metidos?
Diga-me, se você for à despensa, buscar um quilo de açúcar e constatar que ele desapareceu por causa dum formigueiro, você culpa uma formiga ou culpa o formigueiro inteiro? No entanto, cada formiga, individualmente considerada, é irrelevante para o consumo de açúcar, não é? Estamos, portanto, perante um problema de escala que irei procurar desenvolver nas próximas publicações, explicando detalhadamente porque razão não podemos continuar a aumentar os níveis de consumo à escala planetária.
Nota final: este foi o segundo texto (ainda de carácter algo introdutório) sobre uma série de questões relacionadas com as Mudanças Sociais que se avizinham (como eu espero estar errado!). Gostaria que não surgissem críticas básicas sustentando que eu estou contra o desenvolvimento do mundo subdesenvolvido ou contra as economias emergentes. Uma vez mais, não é nada disso que se trata. Se alguém raciocinar nesse patamar, não só não compreendeu nada, como nem sequer é capaz de ultrapassar os limites do formato ideológico em que se encontra fechado. Aos poucos espero clarificar detalhadamente as minhas preocupações com o futuro próximo da Humanidade, explicando porque razão considero que não há margem para uma humanidade simultaneamente mais rica, mais igualitária e, simultaneamente, demograficamente mais densa.