É sabido que gosto de pairar nas Estratosferas: é a minha casa, o meu meio e o meu modo de ser. Não trocava nenhum telejornal, a não ser aquele, célebre, e esperado, do Dia do Juízo Final, pelos poucos minutos do "Clair de Lune", da "Suite Bergamasque", de Debussy.
Infelizmente, o quotidiano não é construído sobre essa infinita poética plural da flexão do tempo psicológico, como tão bem o definiram Bergson, e Proust ergueu à categoria de arte infinita, em "À la Recherche". Poderíamos prosseguir pelas citações, e referir aquele lugar comum, que, tantas vezes associamos ao mundo arcaico de Bruckner, esse pietista medieval, que conviveu com comboios, exposições universais, e invenções de Thomas Edison: no diálogo com Deus, o Tempo não existe. Poderíamos ir por onde quisessem, até se nos defrontar a Realidade.
Para nós, Noonautas, Blogonautas, ou Navegadores do Feérico, o cair na Realidade pode ser uma coisa tão elementar como uma mera linha, inserida numa caixa de comentários, depois de um belíssimo texto, de um poema apaixonado, ou de uma dolorosa confissão, em que alguém, a sombra, o objecto errático, o pequeno carrasco do teclado, destroem, com um pontapé despropositado, todo o enlevo da nossa acção.
Como num final de século, todos nós, nos nossos diversos meios, nos tornámos nefelibatas, e esperávamos que este Admirável Mundo Novo, que é o das Virtualidades trouxesse, à flor das águas, o melhor da Natureza Humana, o mito de Rousseau, e não a sátira de Voltaire, por mais que me agrade a segunda, e detrimento do primeiro, do qual a Vida me tornou essencialmente céptico. Mas, como Pangloss, e essa intocável língua viperina do Século das Luzes, que tentou trucidar um dos textos mais belos -- desculpem-me a confissão -- o "Discurso de Metafísica" de Leibniz, em paráfrase, direi que vivemos, com toda a ironia que isso possa conter, na melhor das Virtualidades possíveis, e aqui, eu, voltairiano na escrita, tenho de prestar homenagem ao grande Leibniz.
Nós, refugiados do mundos dos bits, somos, à maneira de Píndaro, a sombra de uma sombra, ou, já que vamos pela Cultura adentro, não passamos da nova memória da Caverna perdida, da alegoria de Platão, com a Caverna a ser aquele Real que tanto nos desiludiu.
Construímos formas, evocamos memórias, tecemos conjecturas e sofremos o refluxo das marés, na forma de comentários, que, num universo idealizado, deveriam ser a correcção, ou a resposta a um repto, em forma de monólogo, que lançámos, na forma erudita do texto. Algures, a meio de uma conversa, desconstruí um dos piores tiques da nossa convivialidade discursiva, que invadiu, em tempos, a atmosfera de todas as nossas conversas. No vazio do Discurso, como no vazio dos comentários, houve um tempo em que era moda inaugurar uma intervenção com um "É assim", como se uma conclusiva pudesse ser socialmente viável, no tempo exacto em que se entabulou um diálogo....
"É assim" é uma das mais pobres expressões emocionais que poderá invadir qualquer debate de ideias, mas é, como muitas vezes pude presenciar, a Lei do Mais Forte, aplicada, através da Violência da Emotividade, à frágil teia da Argumentação.
"É assim" está, para o Espírito, como um bíceps tatuado para uma aparição de Daphné, no momento exacto da Aurora, e as nossas caixas de comentários, repercutindo todos os vícios da Atmosfera, estão cheias de insuportáveis "é assins", onde qualquer argumentação posterior se torna irremediavelmente impossível.
Um guião para uma consulta das caixas de comentários poderia ser uma importante sugestão para quem reflecte, há muito, e a sério, sobre todos os fenómenos da virtualidade. Por ser tão contestado, poderia aqui invocar Paulo Querido, e acho que seria uma boa pessoa para desafiar. Tudo o resto, no meu texto, não é mais do que um breve guião, na forma estruturalista, para ajudar à complexa estrutura dos comentários. Para os especialistas em Teoria da Literatura -- não é o meu caso -- que tenho uma formação científica dura, todos os argumentos, por exemplo, se resumem a um número finito de formas, assim como, numa topologia ensaiada, todos os comentários se reduziriam a um número finito de estruturas. Deformando Anah Arendt, ao substituir o papel tradicional da Realidade, a Noosfera está para a Atmosfera como a Escola para a Família, ou seja, falhadas a Família e a Realidade, a Escola e a Virtualidade são chamadas a assumir papéis que deveriam já estar ajustados a montante.
Posso cair no vício do descrecionismo, embora tentando adoptar uma postura estrutural: se começássemos pelo Behavieurismo, tínhamos o clássico "Comentário-Skinner", aquele que empurra, pelo estímulo positivo, e pune, pelo estímulo negativo. Isto pressuporia uma pedagogia e o esboço de uma didáctica: infelizmente, não traduz, na maioria das vezes, mais do uma das facetas da Maldade Humana, ou fisicamente falando, uma tentativa de introduzir Entropia em Sistemas geralmente próximos do Equilíbrio. Um dos piores desses exemplos é o caixote de lixo em que se converteram as interpelações dos textos de António Balbino Caldeira.
Nisso, Prigogine acaba por ser sarcástico, e, citando, à sua maneira, Poincaré, diz que, colocadas lado a lado, uma caixa cheia de gás, e uma outra vazia, e estabelecida a comunicação entre as duas, pela óbvia Dinâmica dos Fluídos, o gás da primeira tenderia para se escoar para a segunda, mas, sendo esta transferência regida pelos Movimentos Brownianos, uma vez estabelecido o equilíbrio, nada impediria que os gases acumulados na segunda caixa, por uma aleatoriedade do movimento, voltassem, num dado momento, a reunir-se todos na primeira caixa. Friamente questionado sobre o tempo necessário para esse fluxo, Prigogine associa-lhe "mais do que todo o tempo do Tempo(!)"...
Ora, nós, blogonautas da virtualidade fria, dispomos de tudo, menos da totalidade do Tempo. Vivemos mergulhados no Efémero, e não podemos permitir que as brechas abertas numa excelente estrutura por comentários erráticos possam levar todo o tempo do mundo a restabelecer um equilíbrio e harmonia necessários, e evidentes. Torna-se, pois, útil tentar categorizá-los, já que o identificá-los é, também, uma forma de os exocirzarmos.
Já identifiquei, pelo seu carácter óbvio, o estímulo positivo e o negativo. Eles dividem-se, depois, em diversos sub-tipos. Há o comentário exaltado, que leva a que suponhamos que o nosso texto desencadeou revoluções; temos o comentário erudito, que nos leva a crer que nos movemos numa irremediável menoridade literária e intelectual; reconhecemos o grito da maçada, do não-estou-nem-aí, que pressupõe um penar, desse leitor/a até a um tempo ainda mais longo do que o de Prigogine, para que pudéssemos ser... alguém; temos o comentário didáctico, que se solta de um teclado com pretensões e se esgota na mossa emocional que provoca; lemos o comentário da ameaça, que deixa pressupor, quando vamos para a cama, uma multidão de "jack-the-rippers", a perseguir-nos, mal a próxima manhã se levante; há a ofensa cobarde, que tende para semear a desmoralização; há a máxima vexatória, que incide sobre supostas deformidades físicas, intelectuais ou sociais; há o dedo acusatório do sei-tudo-sobre-ti, que mais não pretende do que semear o desânimo e a dúvida; há o comentário obsceno, que nos atirou para uma escatologia enformadora de um civismo da Cauda da Europa; há o intelectual, que nos faz perder, nas suas teias, as hipóteses sensatas, levantadas por um texto simples; há a meia linha erudita, que nos recorda nada termos lido, e a meia linha néscia, que nos faz pensar que lhe faria bem ter lido mais um pouco...; há a conciliadora, que parece vir em auxílio de um cenário de desordem, que a mesma mão pode ter criado, através da adopção de diferentes máscaras; há a agressão pura, nihilista, que deixa antever que não é só texto que deve ser destruído, mas o próprio espaço onde foi publicado, e, mais grave ainda, a própria mão que o escreveu.
Este não é mais do que um esboço de tipologias. Outros o melhorarão, Foi ditado ao sabor da pena e da emoção, na madrugada de 6 de Julho de 2008, com o país em plena agonia cultural e económica do triângulo Sócrates-Cavaco-Ferreira Leite. Nos últimos dias, cultivámos o humor, através dos disparates que nos foram aparecendo nas nossas próprias caixas de comentários. Muitas vezes, a aparente polifonia, não é mais do que a desagregação mental de uma única personagem. Como na Atmosfera, há os que passam dias inteiros a construir, e aqueles que, com uma só linha, um só gesto, ou um só pensamento, tendem para tentar destruir árduas horas de reflexão e trabalho. Devemos ter paciência e não excluir a Piedade. Por vezes, a maldade aparente esconde uma patologia; por vezes, o excesso de barulho, como escreveu um dos muitos fantasmas que, infaustamente, já povoou esta Net sem limites, "Nem tudo o que ostenta, faz alarido, parece, é. Às vezes, o ruído, o "bater de pratos", a indignação, correspondem ao desejo de esconder, de abafar - com muito, muito barulho - algo de absolutamente inaceitável."
É possível que sim, mas isso não nos diz qualquer respeito.
Este texto foi escrito ao sabor da pena, e gostaria de ter sido mais rigoroso na caracterização das tipologias que se comprometeu descrever. Falhou no que propunha. Todavia, como todos os esboços, é um desafio para que todos vocês, leitores, comentadores, e futuros teorizadores das coisas virtuais, o venham a poder melhorar.
Obrigado pela vossa atenção, nesta magnífica -- é, não é?... -- noite de Verão
(Hexágono editorial nas minhas casas de "Arrebenta-Sol", "A Sinistra Ministra", o "Democracia em Portugal", o "KLANDESTINO", "The Braganza Mothers" e "The Twingly Braganza Mothers")
1 comentário:
Tretas!
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