Mais um pequeno tesouro do espólio da rainha Semíramis
UMA IMAGEM DE MARCA: A Arrogância Francesa
Há dias a actriz britânica Rachel Weisz foi ao Daily Show, o programa do Jon Stewart. Falando sobre um filme que tinha acabado de rodar em Montréal, e questionada sobre a sua estadia, gabou imenso a ambiência daquela cidade, o seu perfume e sabor francês, mas sem a “arrogância francesa”. E Jon Stewart, o militante anti-Bush, portanto imparcial sobre a “velha Europa”, assentia com compreensivos acenos de cabeça. E Rachel Weisz repetia aquele conceito do “sabor a França sem o travo francês” inquirindo se Jon Stewart percebia aquilo que ela pretendia dizer e Jon Stewart acenava que compreendia. Perfeitamente consensual.
A naturalidade com que aquele diálogo se desenrolou e a espontaneidade consensual na referência à arrogância dos franceses como se tal fosse uma verdade solidamente instalada e universalmente (fora do hexágono) aceite, deu-me que pensar. Como se sentiria um francês ao ver aquela gente a falar da arrogância dele, com a tranquilidade e a naturalidade das teorias consistentes, incontestáveis e universais?
A propósito disso vou contar uma história passada comigo, que é paradigmática. Certamente muitas situações semelhantes ajudaram a criar aquela imagem de marca. Em fins da década de 80 os meus pais foram fazer turismo a Paris connosco. Estivemos lá 3 semanas. Ficámos instalados num hotel de nível médio (éramos 6!), mas central, a 100m da Sorbonne, à beira do Boul’Mich e de St-Germain, no coração de Paris. O sítio era óptimo.
Fizemos o check-in e dirigimo-nos para os elevadores, que divisávamos, lá ao fundo. Chegados ao piso, andámos para trás e para diante, à procura dos quartos, mas não demos com eles. Como eram 4 quartos (éramos 3 raparigas de 19,12 e 10 anos e um rapaz de 14 anos), se não os conseguíamos encontrar era porque obviamente não existiam ali. Eram demasiados quartos para passarem desapercebidos por muito despassarados ou ignaros que fôssemos.
Regressámos à recepção e, à medida que nos aproximávamos, o sorriso do empregado alargava-se escarninho. Quando chegámos junto dele disse-nos divertido, com aquela divina sobranceria com que os parisienses mostram a sua superioridade face aos estrangeiros: Eu apontei naquela direcção mas não me referia aos elevadores do fundo ... a meio, à esquerda há um recanto, onde está outra coluna de elevadores. É aí!
Aquele empregado tinha-nos visto a caminhar para os outros elevadores, a esperar pela sua chegada, a arrumar a miudagem e as bagagens no elevador, tudo durante uns bons minutos, “en rigolant”. Não havia qualquer barreira da língua, pois os meus pais falam francês fluentemente e eu própria já o falava então bastante bem – talvez demasiado literário para o “argot” do empregado; tínhamos alugado 4 quartos por 3 semanas e não um single por uma noite; ele tinha um ar bastante mais mediterrânico que nós; etc.. Todavia ele tinha algo de que nós estávamos absolutamente carenciados: era francês ... ou pelo menos parisiense (de adopção, certamente).
No elevador, o meu pai comentou filosoficamente: adoro os franceses ... Rousseau, Stendhal, Victor Hugo, Flaubert, Proust … infelizmente, os franceses que adoro estão todos mortos. Os vivos são insuportáveis!
Não me lembro de alguma vez ter ido a França e não acontecer algo que me faça lembrar esta frase paterna.
(publicado por Joana a 16 de Março de 2005)
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